Há algo inédito sobre cidades à noite. Algo que eu nunca irei me acostumar.
As ruas de San Francisco se assemelhavam com minha vida de diversas formas - estreitas, preenchidas pelo inconfundÃvel cheiro de maconha e com suas subidas e descidas inexplicáveis - me fazendo a crer que talvez destino realmente exista e que, talvez, muito talvez mesmo, todo sofrimento ou felicidade tenha um motivo transparente que nós só nos recusamos a perceber. E pelas milhares de memórias que eu tinha dessa cidade tão odiada - porque só quem passou mais que férias em San Francisco possui mil motivos para abominá-la - andar pelas ruas talvez fossem as melhores.
As mulheres de San Francisco, assim como a cidade, são insuportáveis. E assim como as ruas, são de altos e baixos surpreendentes. Não no sentido de uma pessoa passar por momentos altos e baixos, mas por serem pessoas altas ou baixas. Também não falo de altura, e sim de personalidade. Pessoas com vozes baixas e vidas baixas, meninas de vidas altas e vozes estridentes. Metade das loiras queriam estar em Los Angeles com suas bolsas de marca e suas vida de cinema. A outra metade eram as hippies com cabelos ondulados de praia e papos de amor livre. Enquanto as morenas como nós passavam despercebidas em meio da multidão com nossos mom jeans e blusas tie-dye. San Francisco te transformava em seu habitante em questão de horas, o ar da cidade te intoxicava com seu estilo colorido e tornava eterna sua viagem de ácido. Era uma utopia dos incessantes anos 70, como se a cidade estivesse em um buraco atemporal e ninguém dentro percebesse.
Então durante mais uma dessas festas undergrounds (que sinceramente perdem a graça depois da sua milésima e deixam de ser underground) em que a música estava totalmente fora de moda não havia nada que eu queria fazer mais do que fugir. Sair andando sem rumo pelas ruas da minha vida, nauseada pelos temperos dos restaurantes de diversas nacionalidades e esbarrando em todo nerd ciclista cujo sonho é trabalhar no Vale do SilÃcio. Era como se a cidade finalmente tivesse conseguido chegar ao meu limite. Nada me irritava mais que aquele universo onde todos pareciam dissociados da realidade. Eu poderia empurrar todas as loiras do telhado da casa de onde fugiam dos pais, chutar todos os falsos descontruÃdos e os adultos que ainda se acham jovens. Mas além de cansada -exausta- eu estava totalmente entorpecida. Chapada, claro, mas psicologicamente entorpecida.
Levantei-me do sofá velho e ia direto em direção a porta quando tive a brilhante ideia de comer algo antes de ir pra casa. A música era péssima? Sim. O ambiente era insuportável? Demais. Mas chegar no meu apartamento e perceber que estava com fome e não comi quando tive a oportunidade era muito pior. Jovens idiotas que nunca trancam suas despensas são os melhores anfitriões, então eu decidi atacar os sacos de salgadinhos nas prateleiras antes que alguem mais chegasse.
Talvez, muito talvez, se você não estivesse na frente da porta eu nem te notaria. Você, que era tão impercebÃvel e clichê quanto o resto de nós, com seus jeans e blusa tie-dye. Não teria te oferecido um trago, não teria parado pra conversar, não teria tido as melhores ideias para mudar o mundo que com certeza algum outro gênio nÃvel Steve Jobs já tenha tido no mesmo estado em que nós estávamos. Talvez eu não estaria tão facilmente impressionável, menos aberta, o mundo menos colorido e as cores já existentes menos vivas.
O fato de San Francisco dormir extremamente cedo na verdade não é um fato e talvez seja apenas minha opinião, mas as ruas estavam um pouco vazias demais e nossos dedos entrelaçados (o que não tinha nada a ver com as ruas vazias e sim o fato de estarmos em San Francisco, algo que realmente era fato), o metrô nem um pouco lotado e aquele cara dormindo talvez nem estava drogado. Cantamos com toda nossa voz as músicas que criticamos da festa, dançamos como o último musical da Broadway de nossas vidas. A barra do metrô foi meu pole e meu picolé, nenhum germe me incomodava e nenhuma doença em potencial poderia me atingir naquele momento em que eu me sentia invencÃvel.
Em pé na borda da Golden Gate eu parecia uma suicida em potencial, mas por dentro eu estava mais do que viva. Eterna. Em loop na década de 2010. O sentimento era intoxicante e cada segundo era apaixonante enquanto corrÃamos e gritávamos como se o mundo, o universo, naquele momento fosse nosso. Nossos corpos em sincronia, nossas lÃnguas no instante mais heróico da minha vida, onde eu percebi que minha vilã foi eu minha vida inteira. Fizemos um tour por San Francisco, dos museus que estavam fechados até à s lojas de conveniência que estariam sempre abertas. Passamos pelo pier, vimos as Painted Ladies e andamos pela rota dos bondinhos que não vimos passar. Fomos o que turistas nunca conseguiram ser e fizemos o que locais nunca nem pensaram em fazer. E no amanhecer, rolando grama abaixo no Dolores Park, eu respirei pela primeira vez. Ou pelos primeiros 5 segundos depois que eu jurava ter me esquecido como respirava. Mas parecia a primeira vez. Virei meu corpo em direção ao teu, meus olhos no reflexo do sol nascente nos teus e te fiz prometer que não iria me esquecer.
"Nunca. Eu não conseguiria."
O que eu instantaneamente classifiquei como mentira, pois no minuto anterior eu mal me lembrava de respirar, e sempre havia a possibilidade de amnésia induzida por um trágico acidente de carro ou doenças degenerativas, mas você prometeu com tanta certeza que não abria espaço para discussão ou argumentos, então eu me calei.
"Essa cidade é lenta demais pra mim." Eu disse após o silêncio se tornar desconfortável e assisti seus músculos ficarem tensos com o susto de ser acordado logo após cair no sono.
"Então vá para um lugar mais rápido." Você respondeu, provavelmente para me calar e poder dormir em paz.
"É, talvez eu deva."
Talvez, muito talvez, tenha sido a forma que em que dormimos de roupa e maquiagem destruÃdas no meio de um parque público e mesmo assim continuamos impercebÃveis. Ou talvez seja o fato, que era fato e não apenas minha opinião, de apenas uma noite ter mudado tudo que senti a minha vida inteira e por aquelas 6 horas inconscientes terem sido as mais tranquilas que já tive, mesmo do lado de uma pessoa completamente estranha. Quando cheguei em casa eu só sabia de uma coisa.
Estou me mudando para Nova Iorque. Minha mudança está a caminho, meu voô é nessa madrugada, meu endereço está no final da folha.
Mantenha minha memória viva. Visite quando puder. Leve San Francisco com você, pois te levarei comigo também.